comentando o artigo de André Cavazotti sobre Arrigo Barnabé
Observação: o texto abaixo é uma resenha sobre o artigo de André Cavazotti "O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB: as canções do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnabé", publicado na Per Musi, de Belo Horizonte, v. 1, 2000, p. 5-15. A resenha foi atividade da disciplina de História da Música II, ministrada pelo prof. Ms. Ayres Estima Potthoff no curso de Licenciatura em Música, no Centro Universitário Metodista IPA, em Porto Alegre. Seu uso para fins didáticos é permitido, citando autores do artigo e da resenha. A sua clonagem, não. Além de ser uma baita sacanagem comigo e uma tentativa inútil de fazer o professor de trouxa, plágio é crime. O artigo original pode ser apreciado pelo link: http://www.musica.ufmg.br/permusi/port/numeros/01/num01_cap_01.pdf
Resenhando "O
serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB:
as
canções do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnabé” de André
Cavazotti
Carlos Augusto Borba Meyer Normann
Centro Universitário Metodista - IPA
Novembro de 2016.
1.
Introdução.
O
autor do texto em resenha é o violinista e professor adjunto da UFMG
André Cavazotti e Silva. É Bacharel em Violino pela Faculdade de
Artes Santa Marcelina (1988), mestre em Música pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (1993) e doutorado em Música/DMA pela
Boston University (1998). Professor adjunto da Universidade Federal
de Minas Gerais, na Escola de Música. Conforme seu currículo
Lattes, Cavazotti tem experiência nas áreas de música e teatro,
com ênfase nas relações entre a música antiga e a dramaturgia
contemporânea. Apresenta bons trabalhos científicos sobre a obra de
Camargo Guarnieri e Guerra Peixe, entre outros autores. Sua produção
científica inclui sua dissertação de mestrado, que gerou o artigo
que resenharemos a seguir. Seu orientador na UFRGS foi o prof. Dr.
Celso Loureiro Chaves.
2.
Quem é Arrigo Barnabé?
O
presente trabalho visa resenhar o artigo publicado por André
Cavazorri na revista Per Musi, em 2000. A produção, derivada
da dissertação de Cavazotti, fala sobre a trajetória do polêmico
e genial compositor paranaense Arrigo Barnabé. No estudo, o autor
aponta para a relação da utilização dos processos seriais na
criação de Arrigo, notadamente nas canções do LP Clara
Crocodilo, com o conteúdo sociológico das letras, onde a
marginália da cidade de São Paulo na década de 70 é retratada. O
autor comenta que os processos seriais são utilizados como afronta
ao tonalismo convencionalmente empregado na canção brasileira,
dando cores de uma conotação da distorção e da desintegração do
centro tonal. Em paralelo, o autor também fala no texto das letras,
onde o ser humano é retratado em sua forma distorcida e
desintegrada.
Arrigo
Barnabé nasceu em Londrina/PR, em 14 de setembro de 1951, de mãe
dona de casa e pai escrivão. Sua formação inicial é marista, e
frequentou, por cinco anos, o Conservatório Musical Carlos Gomes, em
sua cidade natal, por cinco anos. O músico e ator tem ampla produção
artística, com vários discos gravados, trilhas para cinema, peças
para orquestra e muita polêmica em sua fértil carreira. De sua
obra, destaca-se o polêmico e visceral “Clara Crocodilo", de
1980. A linguagem musical de Arrigo pende fortemente para as formas
dodecafônicas, em que pese canções com formas tonais também se
façam presentes em seu repertório. A forma está presente na gênese
da formação de Arrigo. Radicado em São Paulo, chegou a cursar a
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (1971 a 1973) da USP,
transferindo-se para a Escola de Comunicações e Artes (1974 a
1979), onde fez o curso de composição, no Departamento de Musica.
Da curta estada no curso de Arquitetura, trouxe uma de suas marcas
intelectuais mais fortes, o gosto e o entusiasmo pelas Histórias em
Quadrinhos, iniciado pelo amigo, quadrinhista e autor das artes de
“Clara Crocodilo” e “Tubarões Voadores”, este de 1984. De
fato, a linguagem quadrinística está muito presente na forma de
suas letras, clipes e composições.
Apesar
de paranaense, a grande identificação cultural e artística de
Arrigo é com o movimento denominado de Vanguarda Paulistana,
movimento artístico e cultural da cena de São Paulo entre 1979 e
1985. A Vanguarda Paulistana era fortemente pautada pelo
experimentalismo, envolvendo nomes como o parceiro Itamar Assumpção,
Vânia Bastos, Tetê Espíndola (que defendeu a barnabeana “Londrina”
em festival da Rede Globo), Eliete Negreiros, os grupos Rumo (do qual
é egresso Paulo Tatit, famoso pelo genial “Palavra Cantada”),
Língua de Trapo e Premeditando o Breque (popular “Premê”).
Numa
forma quase barnabeana, o autor do texto apresenta o compositor de
forma não linear no texto. Por ser esta resenha de cunho
didático-pedagógico, vamos seguir nos atrevendo a discorrer sobre a
biografia do compositor em foco. Retomando à formação de Arrigo,
estudou piano, teoria musical e outras disciplinas no conservatório
de Londrina. Interessado em assuntos diversificados como ocultismo,
astrologia e matemática, Arrigo mudou-se para Curitiba, para fazer
curso pré-vestibular. Imergiu nos grandes filósofos e pensadores,
desde Platão, Voltaire, Rousseau, Kafka, Marx e Freud. Ou seja, com
perdão pelo trocadilho, o marista virou marxista: este é o X da
questão. Também viria a conhecer os grandes compositores
modernistas do século XX, como Stravinsky, Bela Bartók, Stockhausen
e Nono. Enquanto o Brasil considerava a Tropicália como “O grande
movimento reformista da Música”, o polêmico Arrigo apontava para
o caráter mais de paródia do movimento, tendo dito, mais tarde, que
“só a música atonal tinha futuro” (citado pelo autor em
ARANTES, 1981, p.17). De fato, o trabalho de Arrigo, ao apropriar-se
do atonalismo e serialismo de Schoenberg, demonstra que a Tropicália,
enquanto movimento musical propriamente dito, não era, de fato, tão
revolucionária quanto o seriam os futuros trabalhos do compositor
paranaense.
Como
apreciador de quadrinhos, sinto-me à vontade para falar na
influência que a arte serial teve sobre Arrigo. Como lembra o autor
do artigo, as histórias em quadrinhos tornaram-se ponto de
referência estética e fonte de inspiração para criar personagens
nas suas canções. Luiz Gê, autor da capa de “Clara Crocodilo”,
criou um encarte em quadrinhos único para “Tubarões Voadores”,
podendo-se dizer claramente que Arrigo musicou o trabalho de Gê,
hoje professor na Universidade MacKenzie. Pode-se falar que Arrigo
cria um amálgama entre os quadrinhos e a música, seja ela atonal ou
com centros tonais estabelecidos. O clipe de “Suspeito”, canção
de Arrigo Barnabé de 1987, ainda que seja de uma safra mais
convencional para os ouvidos desacostumados com as influências
schoenberguianas, apresenta também vários elementos de HQ, como uma
citação à obra-prima de Frank Miller, “The Dark Knight Returns”.
A
presença de Arrigo Barnabé em festivais de música sempre foi uma
constante, em que pese nem sempre contando com a compreensão de
públicos sequiosos de músicas “palatáveis” e de certo apelo
“festivalesco”. No entanto, esses eventos permitiam divulgar sua
obra e participar de oficinas, como em 1971, no Festival de Inverno
de Ouro Preto, onde teve aulas de composição com Ernst Widmer.
Justamente nessa ocasião, participou da montagem da missa Orbis
Factor, de Aylton Escobar, fato que o marcou consideravelmente.
Em 1975, ingressou no curso de música do Departamento de Música da
Escola de Comunicação e Artes da USP, onde estudou composição com
Willy Correa de Oliveira, e piano com Caio Pagano.
Cabe destacar que já ingressara no curso com “Clara Crocodilo” e
“Sabor de Veneno” escritas. Em 1976, montou o conjunto Navalha,
integrado por Antônio Carlos Tonelli (baixo-elétrico),
Itamar Assumpção (voz e guitarra), grande expoente da Vanguarda
Paulistana e seu irmão Paulo Barnabé (bateria). Cabe destacar que o
Navalha antecipou a formação do grupo do
LP Clara Crocodilo. Em 1978, abandonou o curso de música da ECA/USP.
Motivo: teria sido desestimulado de compor e tocar. Logo na escola de
Música, onde os formalismos certamente não encontravam eco nos
sonhos dodecafônicos do paranaense...
Um
outro festival despertou Arrigo para a mídia. No Festival
Universitário da Canção da TV Cultura paulista, de 1979, Arrigo e
a Banda Sabor de Veneno defenderam (e venceram) o evento com suas
Diversões Eletrônicas. Para uma plateia ainda conservadora, nada
mais esperável que vaias e aplausos dividissem o público, o que
aliás ocorria com certa frequência quando o músico subia ao palco.
E veio “Clara Crocodilo”, a princípio, pela gravadora Polygram,
na série Música Popular Brasileira Contemporânea, para autores
pouco conhecidos. No entanto, a tempestuosa relação entre Arrigo e
a empresa levaram à efetivação do disco de forma
independente, em 1980.
3.
“Clara Crocodilo escapuliu” e outras histórias
O
autor comenta o impacto de Clara na cena musical brasileira,
em 1980. Conforme Cavazotti, Arrigo, ao surgir, foi apontado, pela
mescla de elementos eruditos com letras urbanas críticas, como o
primeiro compositor popular a se apropriar dos procedimentos do
serialismo em seu trabalho, e considerado como a primeira novidade na
cena musical desde a Tropicália. Sobre esse tema, o próprio Arrigo
questiona o rótulo de “novidade” ao Tropicalismo enquanto forma
musical. Um elemento que Cavazotti lembra
é que Arrigo sofreu o filtro da censura, algo comum nos anos 70.
Como
comentamos acima, Cavazotti lembra da vinculação de Arrigo à
Vanguarda Paulistana. Ele cita a jornalista Marília Fiorillo, que
caracterizou a Vanguarda como “(…) um tanto insolente, pouco
afeito à utilização da música como jingle ideológico ou
sentimental, de compenetrada formação musical e impecável senso do
absurdo”. De fato, o espírito irônico do Premê (Premeditando o
Breque) e Língua de Trapo era de escracho explícito, com forte
crítica de costumes e da sociedade, como na “Lua de mel em
Cubatão”, na “Marcha da Kombi” e no “Carrão de gás”,
pérolas do grupo de Wanderley Doratiotto, e na “Deusdéti” da
segunda banda. No entanto, há que ver o lirismo por vezes ácido de
vozes como Tetê Espíndola, Ná Ozzetti e Vânia Bastos, divas do
movimento, e os bem trabalhados arranjos das bandas
vanguardistas, de modo geral]
Cavazotti
fala do retiro sabático de Arrigo, após desfazer a Sabor de Veneno,
estudando e compondo com profusão. Reapareceu em 1982, para duas
semanas no SESC-Pompéia, meca da cena cultural paulistana. De lá,
credenciou-se para tocar no Festival de Berlin, agradando a crítica.
Ao assinar com a Ariola,
relança Clara Crocodilo e produz Tubarões Voadores em 18 de maio de
1984, no Teatro SESC-Pompéia, em São Paulo. As letras seguem seu
libelo ácido sobre a metrópole, recheada de dodecafonismos e com
parcerias surpreendentes a uma primeira vista, como a faixa que
divide com Paulinho da Viola (Crotalus terrificus). Bem
gravada, em 32 canais (Clara o fora com 16...), o álbum marca a
saída de Arrigo dos
subterrâneos e lança-o ao mercado. Lançou ainda Cidade Oculta,
coma trilha do filme homônimo, e Suspeito, mais tarde,
que se revelaria mais palatável ao mercado. Nesse período, Arrigo
pode dar sólida base de conhecimento a sua criação, o que seria
fundamental nas obras que se sucederiam a esta fase de sua vida.
Foi
através de
Clara Crocodilo que o atonalismo livre e o dodecafonismo ganharam
espaço na MPB. Outros autores flertariam com tais formas, como Vitor
Ramil, mais tarde, influenciados pelo mestre paranaense. Clara
Crocodilo contém oito canções em 42 minutos: Acapulco Drive-In
(4’30’’), Orgasmo Total (4’37’’), Diversões Eletrônicas
(7’49’’), Instante (3’30’’), Sabor de Veneno (2’31’’),
Infortúnio (4’50’’), Office-Boy (6’59’’), e Clara
Crocodilo (7’21’’). A contracultura ginsbergiana, a linguagem
quadrinhística e as descrições da cena da metrópole são a tônica
das letras.
4.
Dissecando o Crocodilo
Cavazotti
passa a relatar de sua metodologia de trabalho em relação à obra
de Arrigo. Há um detalhe importante que levou ao autor a
confeccionar as partituras para a presente análise: não haviam
partituras das oito canções do álbum. Ainda haviam dificuldades em
estabelecer correlações atonais e dodecafônicas recorrendo apenas
à simples (se é que esse termo pode ser aplicado a Arrigo) audição
do LP.
Cavazotti
utilizou fragmentos de partituras de cinco das oito canções
(“Diversões Eletrônicas”, “Sabor de Veneno”, “Infortúnio”,
“Office-Boy” e “Clara Crocodilo”), remanescentes
da época da gravação, fornecidos pelo próprio Arrigo. Num dos
exemplos, há indicação de uma ocorrência de uma série
dodecafônica, seguida de sua versão retrógrada. A partitura quase
completa da canção “Clara
Crocodilo” foi fornecida por Hyléa Ferraz, flautista
e cantora, conterrânea do compositor; Arrigo ainda preencheu as
lacunas existentes nas partituras, efetuado em dois encontros que se
realizaram em sua residência em São Paulo, em dois de fevereiro e
cinco de março de 1993. Isso demonstra a necessidade de bons
registros de obras musicais e arranjos, a fim de que não se percam
com o tempo boas ideias musicais e temas, evanescidos na memória
falha...
Cavazotti
nos afirma que as oito canções do LP “Clara
Crocodilo”
são composições seriais. Delas, as duas canções mais antigas,
“Clara Crocodilo” (1972) e “Sabor de Veneno” (1973), são
baseadas em séries de oito e seis alturas, nos dando a ideia de que
Arrigo se vale do dodecafonismo a partir de 1974, de forma quase
concomitante ao seu ingresso na ECA/USP. As demais (“Acapulco
Drive-In”, “Orgasmo Total”, “Instante”, “Infortúnio” e
“Office-Boy”) são dodecafônicas.
O
serialismo de Arrigo, conforme Cavazotti, emprega técnicas de
transposição, retrogradação, inversão, rotação, multiplicação,
fragmentação, operação de derivação e operação de
desmembramento. O método serial foi sugerido por Schoenberg. Ele
procurava organizar a utilização da escala cromática das peças
atonais, de modo a fazer uma série de doze sons, ordenada de acordo
com a ideia do compositor, sem repetição de notas, chamada de série
original. A série original seria manipulada das seguintes formas:
leitura da série de trás para diante (série retrógrada ),
inversão de intervalos (série invertida) e leitura de traz para
diante da série invertida (série invertida retrogradada). Além
disto, a série poderia ser trabalhada de várias formas, seja por
contraponto, harmonia em bloco (teoria dos conjuntos), ou ainda, em
complexos sonoros timbrísticos. O princípio serial permitiria
imensa possibilidade de gamas sonoras ao compositor, trazendo ainda
coerência no discurso musical já que os intervalos da série não
variavam. E ainda como sugestão de Schoenberg nenhuma nota deveria
ser repetida até que a série tivesse sido tocada toda.
Cavazotti
observou indícios de
tonalismo em três canções: “Acapulco Drive-In”, “Instante”
e “Infortúnio”, e de atonalismo livre em seis sequências de
alturas de três canções: “Orgasmo Total”, “Office-Boy” e
“Infortúnio”. Arrigo apropria-se de uma linguagem serial,
similar à dos quadrinhos, para retratar a marginália paulistana dos
anos 70. Conjugando o senso poético com serialismo schoenberguiano e
atonalismo livre, Arrigo usa a distorção e desintegração de
centros tonais.
Cavazotti
traça um paralelo entre os motivadores de Schoenberg e Arrigo
Barnabé para que mergulhassem de cabeça no universo atonal. Ao
elencar a cronologia de obras de Schoenberg, em temas “onde as
dissonâncias são finalmente emancipadas e as funções
harmônicas dissolvidas”, ele fala como que “sentisse ares de
outro planeta”. Em “Sabor de Veneno”, algo similar ao descrito
schoenberguiano é destacado na obra de Arrigo, em que pese a peça
seja serial, e não dodecafônica:
“Não
sei se ela veio da lua
Ou
se veio de Marte me capturar
só
sei que quando ela me beija
eu
sinto um gosto
(uma
coisa estranha, um negócio esquisito)
meio
amargo do futuro
sabor
de veneno”
Quando
ouvimos Schoenberg e Barnabé, há a nítida impressão de ouvir algo
de fora deste planeta, de outra esfera, ou, nas palavras de
Cavazotti, verificamos algo que desperta o “desejo de não
pertencer à dimensão terrestre”. A diferença é que, se em
Schoenberg, de fato, temos outros planetas, oriundos de seu
imaginário, já afirmados em obras como o Segundo Quarteto de
Cordas, de 1908 ("Sinto o ar de outro planeta. . .
Dissolvo-me em sons. . ." ), em Arrigo o “outro planeta
está na própria São Paulo, por vezes com a ação dominada por
extra-terrestre. Em Arrigo Barnabé não há a descoberta pessoal de
um outro mundo de sensações suave e terno, como em
Schoenberg, mas a descoberta quase niilista, lembrando os quadrinhos
de Alan Moore (“Watchmen”, “V for Vendetta” e “The Killing
Joke”). Schoenberg apresenta a “libertação das dissonâncias”,
nome que emprega para falar em atonalismo. Cabe destacar que o mestre
europeu não aprecia a negação do “A” de atonalismo, preferindo
o lado libertário da “emancipação-libertação das dissonâncias.
Assim, o autor europeu utiliza o atonalismo e o dodecafonismo com um
sentido de continuidade histórica. Já Arrigo Barnabé busca o
choque, a afronta, o escândalo, o apocalíptico, a partir do atonal.
Se o atonalismo e o serialismo de Arrigo Barnabé se referem
retrospectivamente ao tonalismo pela conotação de confronto, o
serialismo de Schoenberg é libertário. Se no início do século XX
temos a esperança, a belle epoque parisiense, a expectativa de ver
num café Freud e outros gênios bebericando absinto e bons vinhos,
Arrigo, após a premissa lennoniana de que “o sonho acabou”, usa
a não-tonalidade e o serial como marcas desse apocalipse sonoro e
estético.
Como
fala Cavazotti, Arrigo partiu de uma concepção própria da história
da música popular brasileira ao “intuir,” lá em 1972, que o
atonalismo e o serialismo seriam os passos seguintes após a
Tropicália, já que, como ele mesmo lembra, a barreira do tonal não
fora rompida por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e seus
parceiros de escola estética. Em uma entrevista, o próprio Tom Zé,
que fora aluno de Ernst Widmer, Walter Smetak e Hans Joachim
Koellreutter, afirma que “nunca pensei em fazer música
dodecafônica. Entretanto, (...) me valeu muito para abrir as
fronteiras da especulação. ”
5.
Indo para os finalmentes
Arrigo
não teve sua “intuição histórica” confirmada. “Clara
Crocodilo”, de
fato, não levou um número estatisticamente
significativo de compositores populares a singrar, fora do meio
acadêmico e de círculos extremamente restritos, a utilizarem
atonalismo e serialismo em suas composições. Cavazotti elenca ainda
dois motivos que explicam a não confirmação das intuições de
Arrigo. Primeiramente, ao creditar ao atonalismo/serialismo a classe
de “passo adiante da Tropicália, Arrigo peca por transferir
diretamente à Música Popular Brasileira elementos de outra esfera
da produção cultural, sem interfaceá-los, asem criar verdadeiras
pontes, que justificassem sua “profecia”. Além do que,
considerar como “necessidade histórica” esse “passo adiante”,
transita por um conceito de visão da História sem validade, o do
unidirecionalismo.
Quando
Arrigo usa o binômio atonal/serial como afronta, e não como forma
libertária, baseia-se no texto poético, fortemente pautado no
escancarar da marginália paulistana. Arrigo, niilista de
carteirinha, não nos traz paisagens de outros mundos ao estilo
Schoenberguiano, mas algo cru, quase um “Blade Runner” sem o tema
de Vangelis. Assim como Mário Barbará e Sérgio Napp, nos
primórdios dos anos 80, falaram tonalmente que “eles se encontram
no cais do porto, pelas calçadas”, Arrigo nos fala “neles”
também, mas com outra ideia, de chocar, através de letras ácidas e
de temas mais ácidos ainda, a dona de casa “caretona”, a alta
burguesia urbana, afinal, em tempos de 1980, ainda há pudores em
falar no “Orgasmo
total”, em que pese uma certa Marta (ainda) Suplicy
invada as telinhas do TV Mulher para falar em sexualidade, ainda
pelas beiradas, mais ou menos nessa mesma época. Arrigo berra que o
rei está nu, a todos os ventos.
Em
oito canções de “Clara
Crocodilo”, atonalismo e serialismo provocam o
ouvinte acostumado, desde 1900 e Donga ao tonalismo. Cavazotti cita
Meyer (1967), para explicar o desconforto auditivo de quem ouve
Arrigo, pois rompe com a previsibilidade de canções I-IV-V, I-ii-V
e outros modelos comuns ao cancioneiro. A irritabilidade despertada
pela imprevisibilidade está na pauta do criador, como lembra
Cavazotti. O texto musical é redundante, apesar do atonalismo, com
padrões repetidos, tanto rítmicos quanto sequências de alturas. De
fato, o tema de “Clara Crocodilo” tem um certo grau de repetibilidade que, passado o choque da primeira audição, passa a
soar quase familiar, mostrando que o crocodilo musical de Arrigo não
morde tão forte
Em
que pese Cavazotti afirme que as oito canções do LP “Clara
Crocodilo” não tenham alcançado o sucesso
radiofônico esperado pelo compositor, as faixas foram abundantemente
veiculadas por rádios identificadas com sonoridades mais avessas à
grande mídia, formadoras de opinião mais qualificada, como a
Ipanema FM de Porto Alegre, do Grupo Bandeirantes de Rádio. A mídia
abriu amplos espaços a Arrigo, inclusive a conservadora revista Veja
e no escancarado Pasquim
carioca. Para Cavazotti, “Clara
Crocodilo” ocupa um lugar próprio dentro da História
da música popular urbana brasileira. Sua poética foca a marginália
paulistana, de uma forma que seus então poetas, como Adoniran
Barbosa e Paulo Vanzolini, não haviam retratado. O peso das letras é
reforçado pelas densas melodias, seriais, atonais, difíceis ao
paladar de quem consome música como um fast food. Não é, de
fato, uma obra para fácil ingestão, há quem se irrite com os
primeiros acordes de “Kid
Supérfluo”, arremessando vinis pela janela ao estilo
dos apresentadores de auditório dos anos 70. Mas há que se ouvir
com calma e atenção cada nuance, cada timbre, cada sonoridade
arrigueana. E há que se convir, é música da mais alta qualidade,
bem elaborada, densa, como a São Paulo que ela retrata. O crocodilo
é manso, só é cascudão.
Comentários
Postar um comentário