uma saga do povo-mel
Faço
uso das palavras de Douglas Krenak, Jaider Batista da Silva e outros bons textos garimpados na rede para contar uma história. Muitas
vezes, os portugueses e colonos usavam a expressão “botocudo”
como pejorativo para a etnia Krenak, auto-denominados “Borun".
No
idioma krenak,
a
expressão significa “nós”,
essência do ser. Assim
como o nome Bugre era usado de forma pejorativa no
sul do país para os povos-mel que aqui moravam e ainda resistem,
o
nome Botocudo advêm de um outro
termo
pejorativo para caracterizar os antepassados dos Krenak. Era uma
referência aos adornos labiais e auriculares
que utilizavam. Meu amigo e ex-reitor Jaider Batista da Silva é krenak.
Quero ajudar a contar essa história, de gente que sofreu com a
colonização, a corrida do ouro, a estrada de ferro e hoje padece a
poluição de seu Rio Doce.
Os
Borun eram
nômades de carteirinha,
com poucos objetos para facilitar no deslocamento de um lugar para o
outro. A adaptação ao meio em que se encontravam e a sobrevivência
ocorriam no máximo aproveitamento dos recursos naturais que tinham a
disposição, sem desperdiçar nada. Utilizavam as próprias técnicas de cura com as
plantas da
floresta.
As consumidas eram a urtiga, arnica, fedegoso, sementes de pau-ferro e aqueles elementos secretos utilizados pelos xamãs, passados por tradição oral.
Caçavam,
coletavam, pescavam. Nas secas, saiam de seus acampamentos das
margens de rios e iam para as matas, coletar a fartura de frutos, uns
de comer, outros de fazer tintas e adornos. Peixes com fartura, aves,
mamíferos, répteis e insetos taludos enchiam a barriga de gente
Borun Krenak.
Sua
vida religiosa era
rica. Eles
mantinham um contato constante com o mundo dos espíritos. Através
de seus cantos, concentrações e visões, teciam uma forte relação
entre o mundo em que viviam e o dos "Espíritos Marét",
anjos Krenak e "Gyák", Deus força superior. Também
relacionavam-se com a natureza através da religião. Os rituais
religiosos eram realizados pelos mais velhos ou pelo xamã.
Para
os krenak,
os espíritos marét são anjos protetores, como
nosso anjo da guarda da tradição católica, que cuidam
das famílias que pertenciam em vida. Tipo
a vó Nice comigo... O
relacionamento entre os Marét e seu protegido manifestava-se por
meio de pedidos feitos por um membro da família por intermédio do
ancião e do xamã.
Os krenak
acreditavam que através dos seus sonhos era possível visitar o
mundo dos Marét, repleto de fartura e riquezas, verdadeira
Terra sem Males.
Por intermédio desse contato, estabeleciam seguimentos de suas vidas
humanas e até mesmo previsões futuras relacionadas à comunidade,
ou grupo pertencente. Os Borun tinham também o costume de ascender
fogueiras e oferecer comidas aos mortos, tudo para que as almas dos
mortos não voltassem e buscassem a alma de algum membro da tribo que
estivesse doente, ou, triste.
Os
Borun levavam uma vida em constante equilíbrio com a natureza e com
o parente da sua etnia. Dentro das densas matas atlânticas que
existiam, os Botocudos caçavam, coletavam e cultuavam com seus
espíritos Marét a Gyák (Deus). Através desta cosmovisão,
procuravam sobreviver num mundo em que só existiam os Borun e a
natureza. Os modos de ser e viver dos Borun ficaram ameaçados com a
chegada dos colonos. A subida dos colonos pela extensão do Rio Doce,
em busca das minas de ouro, teve além das matas fechadas, a grande
barreira das ultimas tribos bravias do leste brasileiro,
particularmente os "Botocudos". O embate entre colonos e os
índios marcou a colonização especialmente em Minas Gerais e
Espírito Santo.
Desde
o século XVI, contatos entre portugueses e índios do interior de
Minas, Bahia e Espírito Santo são noticiados. As entradas de
Francisco Bruzza de Spinoza e do Jesuíta padre de Azpilcuelta
Navarro (1555) e de Salvador Correa de Sá (1577) já encontravam
índios Aimoré-Krenak
nas mediações dos rios Pardo, Jequitinhonha e Doce, chegando a
aprisioná-los para serem levados para aldeamentos jesuíticos no
Espírito Santo.
O contato dos Portugueses e os Borun foi marcado pela violência e muitas mortes. Depois de várias tentativas de redução e imposição cultural aos índios é declarada a "Guerra Justa" através da Carta Régia, com o objetivo de desocupar as margens do Rio Doce da presença dos Botocudos, garantindo a segurança da navegação fluvial que se pretendia implementar e a liberação do território extrativistas e mercantis. "Em 13 de maio de 1808, no mesmo ano da instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, o príncipe Dom João declarou a Guerra Ofensiva aos Botocudos". A alegação era de que “estariam inviabilizando os Projetos desenvolvimentistas de interesse nacional para a região”. O discurso não mudou muito em 515 anos de Brasil, em todo o caso...
O contato dos Portugueses e os Borun foi marcado pela violência e muitas mortes. Depois de várias tentativas de redução e imposição cultural aos índios é declarada a "Guerra Justa" através da Carta Régia, com o objetivo de desocupar as margens do Rio Doce da presença dos Botocudos, garantindo a segurança da navegação fluvial que se pretendia implementar e a liberação do território extrativistas e mercantis. "Em 13 de maio de 1808, no mesmo ano da instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, o príncipe Dom João declarou a Guerra Ofensiva aos Botocudos". A alegação era de que “estariam inviabilizando os Projetos desenvolvimentistas de interesse nacional para a região”. O discurso não mudou muito em 515 anos de Brasil, em todo o caso...
Como
a finalidade era ocupar as terras utilizadas
pelos
índios, foi criada uma manobra militar, uma política de
militarização para combater os Botocudos, especificadas na Carta
Régia. As principais divisões militares que se localizavam na
região do médio Rio Doce foram Figueira, hoje Governador Valadares
e Natividade, hoje Aimorés. Chefiada por um militar chamado Teófilo
Otoni, a Companhia do Mucuri também se empenhou na manobra militar
contra os Botocudos. A ação de Teófilo Otoni, em 1858 era
feita com requintes de crueldade, como em toda a Ameríndia, lembrando os relatos de Galeano em "As veias Abertas":
a)
cães especialmente treinados na caça aos krenaks, alimentados
inclusive com carne de indígenas assassinados (de onde você acha que vem a expressão cusco pra designar cachorro? Em Cuzco já faziam algo parecido...);
b)
bandeiras especialmente preparadas para 'matar uma aldeia',
assassinando-se indiscriminadamente homens, mulheres, velhos, moços,
reservando-se apenas as crianças para o tráfico e alguns homens
para carregadores;
c)
índios recrutados como soldados estimulados a cometerem violências
contra os Botocudos, dando provas de renegar suas origens;
d)
comércio de crianças e de cabeças de Botocudos mortos em combate.
Sabe-se que dezesseis delas foram vendidas a um francês que disse
tê-las comprado para o museu de Paris em 1846;
e)
índios sob o regime de trabalho escravo, espoliados de suas terras,
doentes e mal alimentados;
f)
contaminação proposital de comunidades inteiras através de agentes
patogênicos letais para o indígena – sarampo e varíola, por
exemplo.
Com
o fim da Guerra “justa” por volta 1823, o francês Guido Thomaz
Marliére assumiu o cargo de inspetor de todas as Divisões Militares
do Rio Doce, com a missão de contatar e pacificar os Borun. O
francês acreditava que a "civilização" só seria
concretizada a partir da incorporação dos mesmos na sociedade
nacional. Com isso, incentivava casamentos de índios e não índios.
A tentativa era a de integrar totalmente os Borun a sociedade não
indígena. Mas essa atitude de Marliére não foi bem aceita pelos
colonos, que continuavam com as manobras militares. Em função
disso, anos depois Marliére foi afastado do cargo. O governo
imperial realizou várias tentativas de pacificação, até missões
com missionários Capuchinhos fizeram, mas, fracassaram. Depois de
várias tentativas de exploração e domínio fracassado, a ocupação
do Vale do Rio Doce aconteceu de fato no início do século XX, a
partir da construção da estrada de ferro Vitória-Minas, pela atual
Companhia Vale do Rio Doce.
Depois
das guerras coloniais, tentativas de catequização e pacificação,
os Borun Krenak, únicos sobreviventes da nação dos "Botocudos",
tiveram que enfrentar anos mais tarde a abertura da estrada de ferro
Vitória-Minas, que acarretou ainda mais a diminuição do povo. Com
a construção, a urbanização aumentou, e os Krenak tiveram suas
terras invadidas e arrendadas. A idéia da construção da Estrada
de Ferro Vitória-Minas teve sua origem nos primeiros
anos da República.
Quando
foi proclamada a República, o estado dava privilégio para as
empresas inglesas para que essas construíssem estradas e ferrovias e
explorassem o tráfego. Os Krenak chamavam a Maria-Fumaça que
percorria nos trilhos, de "Guapo", que significa monstro
que vomita fumaça. Relatos Krenak contam que muitos Borun morreram
na linha férrea. Os Krenak não aceitavam de modo algum que seu
território fosse invadido e atravessado pelo Guapó dos Kraí.
Existiam Borun que tentavam parar o trem com as próprias mãos e
acabavam morrendo. Os Krenak perceberam que o trem era muito forte
para se parar com as mãos, então, a noite vários homens saiam na
extensão da linha férrea para arrancar os trilhos.
Uma
parte dos Borun
tentaram resistir e: - massacre! Outra, como tática de
sobrevivência, preferiu o caminho da assimilação, misturando seu
sangue com o dos invasores e trocando a mata pela cidade – um
processo de aculturação tão contundente que os filhos desta união
não conseguem se enxergar como índios. Um terceiro grupo reagiu ao
perigo do confronto recuando na floresta até o seu limite, quando
então o governo resolveu fundar um aldeamento (os aldeamentos não
serviam para proteger os indígenas ou
lhe garantir
terras, mas para confiná-los num espaço conveniente às forças
políticas e aos interesses econômicos). Ainda assim, o SPI (Serviço
de “Proteção” ao Índio) arrendou a área aos agricultores, que
exploravam os Borum como mão de obra escrava. Acreditavam (será?)
os senhores de terno que o aprendizado nas lidas da enxada e do arado
seriam um estágio benéfico aos indígenas. Estes, em homenagem a um
de seus líderes que pensava o contrário, passaram a se chamar
Krenak.
Então, na década de 50, os homens de colarinho resolveram construir uma prisão só para os índios, como forma de dar um corretivo nos rebeldes que não estavam dispostos a passar pelo processo de qualificação profissional imposto ou dividir as suas terras com os colonos. O lugar passou a ser muito frequentado pelas lideranças indígenas e os krenak foram proibidos de falar a sua língua dentro das próprias casas.
Chegou o período da ditadura e os fardados milicos indicaram um interventor para o estado de Minas, que resolveu simplificar o conflito. Saqueou as terras que pertenciam aos krenak (mesmo que o assunto fosse de competência federal) e presenteou-as aos agricultores. Os índios foram distribuídos para outras tribos ou abandonados nas cidades próximas.
Pois bem, e as mulheres? Foram elas e as crianças remanescentes – já não havia mais homens adultos – que na década de 90 rumaram por dias a pé de volta pra casa e conquistando o apoio de parte da opinião pública, resgataram em 1996 o que os brancos haviam lhes roubado: o lugar original de viver.
Foram elas também, que no encontro com o útero fecundo da mãe-terra, e determinadas a não mais serem violentadas em seus direitos, iniciaram o processo dos krenak de se apropriarem do estudo formal. Hoje, todo/a jovem krenak em idade universitária está cursando a faculdade.
Essa história foi contada no Fórum Internacional Povos Indígenas em agosto de 2005, na PUC, em Porto Alegre, pelo Jaider. De origem krenak, junto com sua mãe e outros de mesmo sangue, construíram um grupo de solidariedade que propiciou apoio e infraestrutura para os indígenas cursarem a universidade. Estes jovens continuam morando na aldeia e preservando a cultura, mas o povo krenak adquiriu autonomia e hoje é ele quem decide até onde os brancos podem ir nas trocas que estabelecem.
Tenho
umas boas
gotas
de sangue indígena em mim. Toda história das etnias dos povos-mel
da América me diz respeito, me toca a alma. Dividir a saga dos
krenak é uma forma de lembrar do impacto que os borun estão
sofrendo com a irresponsabilidade da Vale/Samarco. Trocaram as bandeiras, guerras e estrada de ferro pela lama tóxica das barragens-gambiarra. Contar essa saga é um ato de
pactuar com um povo que não tratava a terra como posse, mas se fazia
parte dela, da
natureza e da terra dos Marét.
Comentários
Postar um comentário