vaya con Diós, Talo!

Perdemos, no dia 18. o cantor e compositor Raul Eduardo Pereyra, o Talo Pereyra. Argentino de nascimento, gaúcho de alma, cidadão do mundo, em seus 52 anos de carreira, traçou sua trajetória buscando preservar as tradições mais que os tradicionalismos. Talo estava com 67 anos de idade.

A história de Talo Pereyra com a música se confunde com sua vida, com, sua militância política, com seu ser. Talo iniciou-se no fazer musical na infância, na Argentina. As raízes, pelo lado do pai, foram tangos e marchas militares; pelo lado da mãe, folclore e música clássica. Aos 12 anos, recebeu seu primeiro violão, fez conservatório. Aos 12 anos compôs sua primeira música, apresentada no grande Teatro Coliseo Podestá, na cidade natal de La Plata.

Chegou ao Brasil depois do golpe militar, refugiado. Isso foi poucos dias depois do golpe que levara o general Jorge Rafael Videla ao comando da ditadura argentina, em 76. Na Argentina, sua esposa havia sido assassinada pela ditadura de plantão. Ele decide sair da Argentina, sem saber para onde exatamente, já que, nas suas palavras, "sentia que a morte estava passando muito perto". Militante político, a conselho de seus companheiros decidiu que a saída seria...a saída. A Europa era o destino de Talo, mas, ao achegar em Porto Alegre antes de rumar para o Rio de Janeiro, atrás de transporte mais em conta, acabou ficando e ficando. Ficou aqui porque encontrou pessoas solidárias com a causa argentina, em verdade a mesma causa que unia a todo o continente latino-americano.

A Porto Alegre dos anos 70 contava com bares onde havia muita MPB na época, e Talo chamou a atenção com as canções latino-americanas de seu repertório. Temas do também argentino Yupanqui, dos chilenos Violeta Parra e Victor Jara, do uruguaio Alfredo Zitarrosa, e temas próprios. Acabou sendo contratado para cantar nos bares, fazendo amigos músicos. José Cláudio Machado, parceiro de cantorias no 35 CTG, até 1980, foi um dos primeiros. Talo integrou o grupo Os Tropeiros do Ibirapuitã, em parceria com José Cláudio e com o lendário Leopoldo Rassier. Criou com o conterrâneo Martin Coplas o grupo Cantares. Conviveu com grandes músicos da cena local, como Raul Ellwanger, Jerônimo Jardim, Toneco, Zezinho Athanázio. Das suas parcerias, retiro do blogue do Robson Barenho o depoimento do próprio Talo, aqui reproduzido citando fonte:

“Ivaldo tocava com Plauto Cruz e Joao Pernambuco no bar ‘Vinha d´alho’, que eu frequentava. Um dia fui contratado para fazer um show lá. Depois do show, Ivaldo me chamou e convidou pra almoçar no apartamento em que morava, na Praça Garibaldi. Fui. E foi lá que ele me disse que era compositor e que, vendo meu show, tinha lhe ocorrido que, se fosse possível combinar o toque castelhano da mão direita (rasguidos de chacarera e outros ritmos argentinos) com os acordes da mão esquerda brasileira (samba, bossa, chorinho) poderia ficar algo interessante e novo. O terreno onde se daria a tal combinação eram as letras de um amigo dele, jornalista em ZH. Puxou então de uma gaveta uns papéis com letras de um tal Robson Barenho, e ficamos compondo horas a fio. Nesse primeiro encontro compusemos ‘Canto da roda’ e ‘Liberando’. Nessa ordem.”  (originalmente publicado em http://www.robsonbarenho.com.br/?p=1110, acesso em 19/06/2018)

Vários festivais ganhos, cerca de 40, com grandes parceiros. Robson Barenho, Jayme Caetano Braun, Ivaldo Roque, Mauro Morais, Aparício Silva Rillo, Cenair Maicá, José Hilário Retamozo... tudo gente boa de verso e violão. Sua música é fruto de todas as suas idas e vindas pela América Latina, de sua personalidade própria. Fã de Porto Alegre, do Mercado Público, dos seus cheiros, de sua alma... Dizia que compunha melhor inconsciente, tragueado, e que raras eram as canções feitas “de cara”. Vai saber...

De saúde fragilizada, Talo acabou por desenvolver um quadro respiratório bastante delicado. Os pulmões enfraquecidos o deixaram internado por duas semanas na UTI do Hospital Conceição, com um quadro inflamatório grave do pulmão. A maior parte do tempo sedado e inconsciente. No dia de ontem (18/06/2018) os aparelhos de ventilação forçada que o mantinham vivo foram desligados. Vaya com Diós, Talo! Para lembrar de tua obra, coloco a letra e a música de tua parceria com Ivaldo Roque e Robson Barenho, Canto da Roda, nas vozes de Raul Ellwanger e Nana Chaves, defendida na IX Califórnia da Canção Nativa, de 1980.




Canto da Roda
(Robson Barenho, Ivaldo Roque e Talo Pereyra)
Intérpretes: Raul Ellwanger e Nana Chaves
Registrada no LP 9ª Califórnia da Canção Nativa / 1980

É novo o peão que roda
É linda a prenda que dança
É forte o canto da moda,
Mais forte do que a esperança.

É bravo o canto da roda
É caro, a quem planta, o trigo.
E se este verso incomoda,
que os justos cantem comigo.

A força que tem meu verso
não é de meus braços finos.
É da lei que os campesinos
geraram por rebeldia.
É da mais grave agonia
que a desigualdade traz.
É do suor dos piás
que o patrão não avalia.

A força que tem meu verso
não veio do berço, não.
É força que a privação
Impõe, criando infelizes.
É força que as cicatrizes
Impõe, riscadas na gente.
É força que, de repente,
faz sementes e raízes.

Minha alma combatente
me faz parceira fiel
do soldado sem quartel
que revolve a terra crua,
que sangra e que não recua
plantando pra não colher,
colhendo pra não comer,
marchando agora pra rua.

Mais do que o verso não trago
pra luta que agora travo.
Mais forte é o canto do escravo
que canta, embora as correntes.
E a lo largo, quanto as mentes
se abrirem pra novas normas,
decerto virão reformas
brotadas destas sementes.

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