Lado B do JP

Ainda estou naquela ressaca emocional da perda do amigão João Paulo. Dar tchau (ou thau, como a Sophia uma vez escreveu numa mensagem para ele - e ele respondeu igual, aliás) para um cara que convive contigo como amigo, parceiro de criações, de movimento ambientalista (papo pra outra blogada), colega de trabalho, professor, compadre, copiloto de churrasqueira, conspirador da tomada da sede regional da Igreja Metodista...confesso que é um bocado de historinha que a gente dividiu com o JP.

E digo a gente, pois não estou só nessa saga. No sábado, pela manhã, enquanto nos despedíamos dele, as lembranças vinham aos borbotões. Desde a já mencionada invasão à Sede Regional da Igreja Metodista, para resolver um impasse referente a um congresso de Jovens da referida denominação (uma rasteira tomada por um então presidente de Federação com alma golpista...), às pichações de muro com o nome de nossa meteórica banda de rock, há muita história para contar, transitando entre o fato e a lenda.

Sim, mencionei que ele era o vocalista de nossa improvável banda? A Rasputin, com todas as suas duas apresentações, foi nossa tentativa de banda de rock em plena década de 80, quando as garagens catapultavam bandas para a cena, por períodos que variavam de uma hora ao até hoje. Duas apresentações...quem diria, uma no bom e velho IPA, a derradeira, nos festivais de rock promovidos pelo GEIPA. A primeira fora no último FEMUSA, no Colégio Americano, o festival de música sacra baseado explicitamente nas Califórnias uruguaianenses, teve "Calaram o Boff" com a melhor letra do evento. Uma letra cheia de simbolismos, sobre a censura sofrida pelo teólogo Leonardo Boff de um certo cardeal do Vaticano, o tal Joseph Ratzinger, a.k.a Bento XVI. ...mandaram calar o velho Boff, eles e as ações de armas, eles e os irmãos de Malta, eles e seus anéis de ouro... Numa estética Ramone de dois ou três acordes dando conta do recado, JP cantou (!), com este que vos memoriza ao baixo, o hoje reverendo Roberto Garcia na guitarra base (sem solo, aliás) e o baterista Fábio Machado (ironicamente, filho do João Machado, coautor do clássico nativista "Guri"). Performando o teólogo calado, com direito a fita isolante na boca, o parceirão Ozeas Fortes, amarrado e calado, levando microfonadas na cabeça de nosso alucinado vocalista... A música, criação coletiva movida a vinho barato e qualquer coisa mastigável, recebeu a premiação de Melhor Letra naquele evento...

Em outra canção com performance igualmente peculiar, "Pequeno perfil de um cidadão cristão" vinha embalada em muita ironia, jogos de palavras e aquela pegada ao estilo Marcelo Nova. "fulaninho era pecador, ia à igreja todo mês, mas só sabia o Salmo 23", recitado o primeiro versículo ao som de uma levada de milonga, para quebrar a coisa toda.

No RESTIPA, promovido pelo GEIPA, do então colégio IPA, foi a vez de cometermos "Massacre na Palestina" (que mais tarde transformei em blues, dando uma cara marcelonoviana para o tema), "Mulher Inflável" e "Calvino era punk". "Calvino era punk, ele e sua mina, Ellis Adrenalna, e dê-lhes adrenalina...(...)...iconoclasta de imagens gastas, iconoclasta, de imagens castas, iconoclasta, de imagens basta" tinha direito a refrão e tudo...a dê-lhes adrenalina na enlouquecida trupe!

A hoje chamada de Palestina Blues (nota: Roberto, a galera segue coautora, o saco é identificar quem fez o que) é mais ou menos assim: "Mais um massacre na Palestina, seu corpo é sangue e heroína, Mais um massacre na Palestina, vítimas do imperialismo anglo-judeu, Mais um massacre na Palestina, que fim levou a Rosa de Saron? Uma criança nasceu no front, o que será que lhe daremos de bom? Ou foi Moisés que conduziu o povo eleito prum barril, ou foi o Cristo que se iludiu com o povo santo que o traiu?". Letra forte, profética, pegada...

E, claro, "não quero mais mulher neurótica, quero uma mulher erótica, uma mulher inflável que possa carregar pro banheiro da escola (...) doutor Freud me preveniu pro perigo de ser viril, um dia gozo forte e estouro seu ventio" ia de Freud ao complexo de Cinderella, passando pelo sexo manual no banheiro da escola e a ideia de ter uma boneca inflável voando e soltando ar faziam da criação uma das mais surrealistas músicas da inusitada trupe, que, além dos quatro cavaleiros do Apocolapso, tinham a cumplicidade de Pedro, irmão de JP, e de Edu, me irmão, entre outros agregados ao peculiar bando de rock...

Mais tarde, um JP mais calmo me presenteou com uma letra imensa, toda cheia de imagens gauchescas. Pois eu morava sozinho na época, e, uma noite, após chegar do trabalho, a ligação do amigo. E ele me oferece a letra, e começa a me ditar. Enquanto escrevo, pergunto: "bah, andou lendo Barbosa Lessa?". As imagens campesinas eram dignas de um filho da fronteira, e olha que o parceiro nasceu em terras bandeirantes... Pouca coisa mexi, uma ou duas palavras, e veio "Jornada do tempo". Veio bonita, serena, reflexiva... Já brincava um tema ao violão quando vieram os versos por telefone, encaixando direitinho.

Bom, entreguei o Lado B do meu compadre...  os colegas da Música certamente nem tinham ideia desse passado do nosso professor, coisas que só quem viveu tudo isso saberia. E fica a pergunta: será que o Roberto toparia uma jam com essa coisa toda, pra resgatar essas histórias?

Militante ambientalista, vocalista de banda de rock, letrista e ainda era professor...

Comentários

  1. E de repente voltei quase quatro décadas no tempo. Teu relato me fez viajar por bastidores de uma juventude tão certinha e ordeira, que protestar contra a censura era coisa ousada. Defender natureza, coisa de maconheiro. Querido Guto, minhas mais doces e ternas memórias de juventude tinham você, Moita, JP, Simone e tantos outros amigos e amigas queridas do Coisa na Roda, dos encontros no CRIM, da Iraci nos controlando e, sem dúvida, dos festivais de música em Santa Maria, Porto Alegre e Uruguaiana. Tempos de saudade, agravada pela partida precoce do querido João Paulo.

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  2. bah...e temos lembranças. E temos histórias.E temos estradas. Bom, até hoje defendo a Natureza, profissionalmente...até hoje ouso protestar contra as censuras e todo o resto...
    Tempo bom. O tempo em que a gente trazia nossa marca cultural nos encontros, rodas de violão, fogueira, mate e vinho barato...Das caminhadas em bandos enormes na noite, às vezes contemplando o nascer tímido do sol... E fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco!!!

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