Intolerância
Briga de bugio. Ridículo. Repleto de intolerância o gesto da Marvel
Comics ao encerrar o contrato com o desenhista indonésio Ardian
Syaf. Pra
quem não sabe, Syaf é o desenhista responsável pelo novo título
dos X-Men nos EUA, X-Men:Gold.
Alguns leitores identificaram nos últimos dias mensagens de cunho
político na primeira edição do gibi. Bom, cabe dizer que o cara
também não foi exatamente o ser mais tolerante do mundo, longe disso, bancou o
talibã do gibi, senão vejamos o que segue.
As
tais mensagens apareceram numa camiseta vestida pelo personagem
Colossus, o herói russo grandalhão de corpo de aço orgânico, que
tem a inscrição "QS 5:51", e depois em uma fachada de
loja, com o número 212. O primeiro se refere a um verso do Alcorão
que pede que muçulmanos não tomem judeus e cristãos como aliados e
que diz que "Alá
não guia pessoas de má fé".
O
verso tem sido repetido em protestos políticos na capital da
Indonésia, Jacarta, contra o governo de Basuki
Tjahaja Purnama,
governador na ilha de Java, e que é cristão. Ahok, apelido do
governador, é indonésio de origem chinesa e cristão. A religião e
a origem étnica de Ahok o fizeram alvo de ataques racistas. Cabe
destacar que Ahok é tido como forte partidário do diálogo
inter-religioso e do direito das minorias. Ele afirmou, em uma
entrevista, que as interpretações por determinados teólogos
muçulmanos de um versículo do Alcorão, segundo os quais um
muçulmano só pode votar em outro muçulmano, estavam equivocadas.
Foi o que bastou para que o caldo entornasse. A referência "212"
cita um protesto ocorrido em 2 de dezembro de 2016, em que 200 mil
pessoas protestaram contra Ahok.
Bom,
vamos lá. O verso QS 5:51 está sujeito a uma quantidade
verdadeiramente fantástica de traduções imbecis e tendenciosas, de
acordo com vários conhecedores do Alcorão. A Bíblia Sagrada também
tem interpretações equivocadas e manipuladas. Todo livro sagrado,
mal conduzido, pode ser tendenciosamente utilizado por sacanas de
plantão.
Sabe-se
que 75% dos muçulmanos são falantes não-nativos de árabe, que
sabem algumas frases de árabe no máximo, o suficiente para não
confundir mjadra com tabule. Sabem somente o suficiente para poder
realizar as cinco orações diárias, no idioma do Profeta, além de
alguma terminologia religiosa relacionada tangencialmente. Para
colocar de forma mais simples, a grande maioria dos muçulmanos em
todo o mundo, assim como cristãos e judeus, não leram todo seu
livro sagrado e interpretaram sabe-se lá como, com a ajuda de
pregadores nem sempre fiéis aos textos, que dão seus interpretaços
ao seu jeito...bacana!
Aparentemente,
a tradução indonésia (o desenhista é indonésio) de 5:51 lê algo
como isto: "Oh você que acredita, não tome os judeus e os
cristãos como líderes/conselheiros." Syaf referenciou
esse versículo como
um protesto contra o
governador de sua província, que
foi acusado de blasfêmia/corrupção/ridicularizar o Alcorão/ser
chinês e cristão/etc. Aqui está o problema: a palavra árabe nesse
verso que é traduzido de várias maneiras como líder, conselheiro,
amigo, íntimo etc. é أولياء
(awliya
'), o plural de ولي
(wali).
E não significa nenhuma dessas coisas.
Awliya
'neste contexto significa algo muito específico, e entre os falantes
árabes, esse significado mudou muito pouco ao longo dos últimos
1400 anos. Um wali é um conselheiro legal ou às vezes um tutor
legal. Alguns exemplos: um advogado é o seu wali no tribunal. A
interpretação indonésia, nesse caso, é menos imbecil do
que a tradução inglesa: amigo. Um wali não é exatamente um
amigo. Um wali não é nada relacionado à amizade, mas a negociações
comerciais, sérias, bem estabelecidas. É o que hoje chamamos de
advogado. A tradução literal do amigo é siddiq; Você também pode
usar sahib (companheiro). Wali nem sequer vem da mesma raiz que
qualquer uma dessas palavras. A coisa é meio lógica, se avaliamos o
contexto de época em que o Quran foi escrito, até pelo lado
comercial de tudo. Maomé era comerciante, honesto e bem sucedido.
Conhecia as relações comerciais de seu tempo, e percebia que nem
sempre as normas comerciais dos diferentes povos eram homogêneas,
não haviam órgãos reguladores de comércio internacional na época,
daí o texto. O Alcorão nunca sugere que você não pode ser amigo
de não-muçulmanos. Pelo contrário! A Bíblia também. Olha que
bonito:
(Alcorão
2:62) “ Os crentes, os judeus, os cristãos, e os sabeus, enfim
todos os que acreditam em Deus, no Dia do Juízo Final, e praticam o
bem, receberão a sua recompensa do seu Senhor e não serão presas
do temor, nem se atribuirão.”
(Lucas
9:49-50) " Então
replicou João: “Mestre, vimos um homem expulsando demônios em teu
nome e nos dispusemos a tentar impedi-lo, pois afinal, ele não
caminha conosco.
Jesus,
entretanto, lhes advertiu: “Não o proibais! Pois quem não é
contra vós, está a vosso favor”. "
Embora
existam algumas interpretações rígidas que sustentam que este
edito se aplica igualmente a todas as situações através do tempo e
do espaço, a história muçulmana está nadando em conselheiros
judeus, cristãos e hindus elevados a posições de conselho íntimo
em vários califatos. Maimonides, filósofo e médico judeu,
estudioso da Torá, era médico pessoal de Saladino, histórico
sultão árabe. O Profeta Maomé tinha amigos não muçulmanos.
Cristo tinha amigos não judeus (aliás, Ele era judeu). Gente que
entendia que a tolerância é fundamental, e que, não importa se
Allah, Javé ou Deus, o Princípio é um só, tendo o nome que tiver.
Os crentes, judeus, cristãos e sabeus não serão presas do
temor...Assim seja! Feliz Páscoa!!!
Comentários
Postar um comentário