Ô Nice!!!

Era assim que meu avô, seu Otacílio, muitas vezes chamava minha avó, dona Eunice, ou, simplesmente Nice, ao chegar em casa. A voz forte, quase que flinststonianamente ecoava pelo apartamento 11 do edifício 230 da Rua Luiz Manuel, popular Beco da hoje Vila Planetário, vizinho do edifício de meus avós. O contraste da voz forte de meu avô com o falar quase sussurrado de minha avó era bem evidente, e, com perdão do trocadilho, gritante...

Hoje, dona Nice faria seus 97 aninhos, nascida ela em 1919, num 30 de setembro. Filha de uma mulher que logo ficou viúva de um alfaiate, com duas irmãs mais novas, teve o estigma de enfrentar a tuberculose quando mocinha, afastando-se dos estudos. Para poupar-se, ou a nós, sempre falava que era "uma mancha do pulmão"... 

A vida a afastou da sala de aula, mas não a afastou da leitura, ávida devoradora de livros e jornais que sempre foi. Veríssimo (pai e filho), Agatha Christie, Jorge Amado, Stanislau Ponte Preta, literatura espírita, o que viesse a suas mãos delicadas virava leitura. Gostava de ler José Simão na Folha de São Paulo, rindo sempre ao ler a coluna, quando chegava o jornal em casa, no final da manhã. Assistia as indefectíveis telenovelas, muitos filmes, curtindo em especial o Canal Brasil da televisão fechada, na época em que o referido canal veiculava os velhos filmes da Atlântida e Vera Cruz, de sua juventude.

Enquanto as mãos permitiram, qual aranha tecelã, fazia roupas em lã e crochê, com habilidade única. Dizem as lendas que, quando as filhas eram adolescentes, ela ia pela Rua da Praia, com uma caderneta e um lápis, copiar modelos de roupas para confeccioná-las na velha máquina Singer, para que elas "não fizessem feio" quando saíam, vestidas com roupas feitas por ela mesma. O fato de passar muito tempo à máquina de costura teve seu preço, com a acentuada cifose em sua coluna vertebral. Nada que tirasse de seu olhar a meiguice e o amor de sempre...

Corajosa, chegou a dar guarida a um amigo das filhas, em fuga para o Chile, fugitivo da repressão, durante os anos de chumbo da Ditadura. Foram poucos dias, mas renderam muitas histórias na tarde, a diferentes interlocutores e interlocutoras...

Cozinhava como se o fizera para deuses, tão bom seu tempero e tamanho o amor que punha a cada prato, sempre se preocupando se estava do agrado dos comensais daquelas mesas fartas. Na tarde, o café, preto e forte, era catalisador de longos papos na mesa da cozinha, emendando no lanchinho da tarde. Os papos regados a café forte eram recheados dos seus conselhos, sempre sábios, sempre na hora certa.

A saúde frágil de dona Nice fez seu corpo ir aos poucos se "desligando"... a pressão arterial elevada cobrou seu tributo, e a frágil saúde de Nice, qual um copo trincado sem quebrar, fez com que ela deixasse esse plano da existência em 2005. Na sua despedida, as palavras da pastora Iraci Strejevitch consolavam as gerações de filhos e filhas, netos e netas emprestados pela vida à sábia idosa.

Nice...97 anos...quanta falta você faz, vozinha, e, antes que perguntem, o vô também faz falta, sejamos justos com o homem de poucas letras mas imenso zelo pelos seus, que me ensinou a fazer cálculos de cabeça, ser gremista e apreciar longas caminhadas... Saudades de meus velhinhos...

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