considerações sobre "Mozart: Sociologia de um Gênio", de Norbert Elias

Pessoal, resolvi socializar o texto que apresentamos ao prof. Ayres Potthoff para a disciplina de História da Música I. Boa leitura!

  1. Sobre o autor

Norbert Elias nasceu em Breslau, Alemanha, em 22 de junho de 1897, filho de Hermann Elias e Sophie Elias. Por memória afetiva, cabe a mim destacar que, dessa cidade, veio meu bisavô paterno. 
Em 1915, Elias participou das mobilizações para a 1ª guerra, integrando o front ocidental. Iniciou os estudos de medicina e filosofia em Breslau no ano de 1918, frequentando dois semestres em Heidelberg e Freiburg, respectivamente. Defendeu sua tese de filosofia em 1924 e no ano seguinte foi morar em Heidelberg, ingressando na carreira universitária, onde encontra Karl Manheim e passa a se dedicar ao estudo da sociologia, até que 1930 tornar-se seu assistente em Frankfurt.
Com a ascensão do nazismo, Elias deixa a Alemanha em 1934 e tenta encontrar um posto numa universidade da Suíça, depois na França. Foi para a Inglaterra em 1935, ano em que começou a redação do livro O Processo Civilizador. Com alguns intervalos em outros países, viveu neste país até 1975, onde foi professor no Adult Education Center e na Universidade de Leicester.
Além da Inglaterra, foi professor de Sociologia na Universidade de Gana, perto de Accra, entre 1962 e 1964 e, depois deste período, foi professor convidado na Holanda (Amsterdã, Haia) e na Alemanha (Münster, Constanz, Aix-la-Chapelle, Frankfurt, Bochum, Bielefeld).
Depois de 1975, passa a dividir sua vida entre Amsterdã e o Centro de Pesquisas Interdisciplinares (ZIF) de Bielefeld. Em 1977 recebe o prêmio Adorno da cidade de Frankfurt pelo conjunto de sua obra. A partir de 1984 passa a viver definitivamente em Amsterdã, onde morre em 1990.


  1. Capítulo 1: “Ele simplesmente desistiu”
Como nos lembra Elias, Wolfgang Amadeus Mozart, batizado Johannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart morreu em 1791, aos 35 anos, sepultado a 6 de dezembro em vala comum. Mozart faleceu, conforme alguns textos, por febre miliar aguda.
Mozart sofria com a falta de reconhecimento, amor e generosidade das pessoas, o que levou-o a profundo quadro depressivo. Talentoso, ele sabia de sua capacidade, sem dúvida acima da maioria das pessoas. Seu talento precocemente estimulado levou-o a compor desde a mais tenra infância. No entanto, sua extrema carência afetiva levava-o a crer que ninguém, de fato, o amava ou o amara. Seu estado de permanente solidão e carência lhe levou a compor o Réquiem, como se para si mesmo.
Desde a infância, Mozart tinha insegurança no amor e isso foi alcançando proporções maiores com o passar do tempo, fazendo com que ele tentasse preencher as lacunas deixadas pelo pai, que investiu para que ele se tornasse um grande artista, não por amor a ele, mas à música e à esposa. No entanto, ambos não corresponderam a suas expectativas, fazendo com que ele se tornasse um ser amargurado e infeliz, mergulhado num poço de depressão e tristeza, tendo seu desfecho com a morte. Sobre a esposa, a diminuição do seu sucesso, levado a cabo pelo abandono do apoio financeiro da corte vienense e consequente empobrecimento, pode ter esfriado os sentimentos de Constanze. Daí para aprofundar o quadro depressivo e abrir as portas à doença era um pequeno passo.
Leopold Mozart, pai de Wolfgang, buscou adaptar os comportamentos e sentimentos de seu filho ao padrão da corte na tentativa de fazer dele um cavalheiro ao estilo cortesão. De comportamento pendendo ao histriônico e bufão, a estrita disciplina imposta por Leopold rendeu frutos. Assim, desde cedo aprendeu a se vestir de acordo com os ditames de moda da corte, inclusive utilizando peruca. Mozart gostava de se vestir e comportar-se à maneira da corte, mas, não possuía aptidão para aquelas habilidades. Tinha consciência de que, para ser visto com superioridade deveria seguir tais ditames, e é impossível que não tenha sentido o desejo de provar que era realmente um cavalheiro. O bufão que era era intimamente conectado ao grande artista, eterna criança e homem de criação.
Mozart não se julgava particularmente digno de receber amor, em seus mais recônditos pensamentos. O aspecto pouco sedutor, a aparência em decadência no decorrer dos anos, levam-nos a ver um homem paradoxal: de um lado, o orgulho de seus feitos musicais; de outro, alguém sem o menor amor próprio.Para Elias:
a tragédia de Mozart(...) fica dificilmente oculta dos ouvintes pelo caráter sedutor de sua música. Isso prejudica nosso envolvimento com ele. Não pode ser muito correto separar desta maneira o artista do homem, retrospectivamente. Deve ser difícil (...) amar a arte de Mozart sem sentir um pouco de amor pelo homem que a criou.”(p. 14)
O autor inicia apresentando o Mozart amargurado, entristecido. Dá pistas sobre a gênese de sua tumultuada personalidade, que são alcançadas no decorrer da leitura, aqui ora resgatadas para criar o panorama da psique do genial compositor. Genial, porém uma personalidade deprimida, por julgar-se menos amado do que desejaria, ou quem sabe questionando se seria ele merecedor da algum amor.


  1. Capítulo 2: “Músicos Burgueses na Sociedade de Corte”

Elias, neste capítulo, situa a vida de Mozart em um período que surge da dinâmica do conflito entre os padrões de classes mais antigas, em decadência, e os de outras, mais novas, em ascensão. Fica claro que o texto do sociólogo alemão, mais que uma biografia, é um estudo de trajetória de um artista.
Vale observarmos que Elias pensa neste contexto como um conflito de padrões. Tal conflito ia para além do embate entre os valores e ideais das classes aristocráticas da corte e dos estratos burgueses. O sociólogo não reduz sua análise às questões meramente sociais, mas do reflexo dessas questões no interior de Mozart. Para o autor, a questão principal estava em como, para o indivíduo, este conflito perpassava toda sua existência social.
Em seu texto, Elias utiliza os conceitos de establishment e outsider (p. 16), fazendo uma nítida distinção entre os grupos de outsiders burgueses e o establishment cortesão como grupos em uma arena política de conflitos. Comenta que havia um equilíbrio de forças mais favorável ao establishment cortesão que à recém emergente burguesia. Mozart era um outsider burguês a serviço da corte, claramente. Cabe lembrar que, diante desse fato, percebemos uma questão que deve ser ressaltada em sua análise: a cultura passa a ser uma arena politicamente menos perigosa. Mozart lutou contra o poder estabelecido de uma sociedade do patronato utilizando sua própria música em prol de sua dignidade pessoal. Perdeu a batalha, certamente, à sua época. Elias chama a atenção para o lugar comum das reificações das categorizações sociais referentes às mudanças sociais da segunda metade do séc. XVIII, quando da derrota da nobreza feudal já solapada pela mudança econômica da Revolução Francesa.
Contudo, na época de Mozart, tínhamos uma classe artística que dependia do patronato, do gosto da corte e de seus grupos satélites. Haveria que conseguir algum cargo junto à corte de forma permanente, e que essa corte pudesse sustentá-lo. No caso da Alemanha protestante, ainda havia a posição de ser organista e mestre-de-capela.
Mozart, aos 21 anos, demitiu-se junto ao empregador, o príncipe-bispo de Salzburgo, tentando a sorte em outras posições. As dificuldades não foram nem um pouco pequenas. Cabe lembrar que o pai de Mozart, Leopold, ocupara o mesmo posto anteriormente. A ligação entre este fato e a tumultuada relação pai-filho é evidente. Leopold havia educado o filho para ser um músico do establishment, nunca um outsider. Foi a persuasão de Leopold que permitiu que Wolfgang reassumisse o posto em Salzburgo, já em 1779. Contudo, romperia em 1781 com o príncipe-arcebispo outra vez. De certa forma, a revolta de Wolfgang com o patrão era, de alguma maneira, relacionada à tumultuada relação com o pai que julgava não amá-lo na medida em que desejava, ou que não seria bom às expectativas paternas, em seu imaginário.
Os problemas observáveis dos seres humanos são categorizados por conceitos de classes rebaixados a clichês, como “nobreza”, “burguesia”, “feudalismo” e “capitalismo”. Categorias como estas bloqueiam o acesso a uma maior compreensão do desenvolvimento da música e da arte em geral. Esta só é possível se a discussão não se restringir aos processos econômicos ou aos desenvolvimentos da música, e se, ao mesmo tempo, for feita uma tentativa de iluminar o destino das pessoas que produziram música e outras obras de arte no interior de uma estrutura social em transformação.
As palavras “civilização” e “cultura”, neste período, foram utilizadas pela cultura germânica como símbolos de padrões diferentes de comportamento e sentimento. Em uma clara tensão entre os círculos do establishment cortesão e os grupos de burgueses outsiders. Isso chegou ao ápice no fim do século XX com a ascensão das duas classes econômicas das classes média e da aristocracia. Ele cita a fusão dos interesses entre burgueses e nobres, porque é resultante justamente desse jogo, assim como foi terreno fértil para as diferenciações entre o absolutismo aristocrático e o absolutismo burguês e proletário. Na juventude de Mozart, ainda havia um certo grau de integridade nos poderes da aristocracia da corte, a despeito do que ocorria na França mais ou menos na mesma época.

Sempre articulando o indivíduo e sua relação com seu meio, Elias aponta para a “vida paradigmática de Mozart”, e como havia dependência do artista para com os empregos que a corte poderia vir a lhe oferecer. Assim, chama a atenção para o destino de um burguês a serviço da corte no final do período quando, em quase toda a Europa, o gosto da nobreza de corte estabelecia o padrão para os artistas de todas as origens sociais, acompanhando a distribuição geral de poder. Isto se aplicava especialmente à música e à arquitetura. Michelangelo vivera conflitos com seu empregador, o Papa. No campo da música, Bach rompera com o duque de Weimar e obteve posição em outra corte, a despeito da ordem de prisão contra JSBach, à qual o compositor resistira ferozmente.
Elias salienta que, mesmo nos países protestantes, em que um músico poderia ocupar posições como organista de igreja em uma das cidades grandes e semi-autônomas, ele deveria preferencialmente já ter ocupado um cargo similar numa corte. Na sociedade de corte, cabe lembrar que o status de um músico era o mesmo de um cozinheiro ou pasteleiro. Todos tinham que, obrigatoriamente, estar cientes de suas posições subalternas sem serem escravos. Estes funcionários eram pejorativamente chamados de “criados de librè”. O pai de Mozart, mesmo não satisfeito com sua posição social, se submeteu a esta estrutura. Esta era a estrutura fixa em cujo interior cada talento musical individual tinha de se manifestar. Não é possível compreender a música daquela época, seu “estilo”, como muitas vezes se diz, sem ter em mente, de maneira clara, tal estrutura.


  1. Capítulo 3: “Mozart se torna um artista autônomo”
No capítulo, Elias aponta como Mozart não consegue se enquadrar no padrão até então estabelecido. O compositor “antecipou as atitudes e os sentimentos de um tipo posterior de artista”. A decisão de largar Salzburgo fez com que o empregado criasse o conceito de artista autônomo, vendendo seu trabalho artístico livremente. “Mozart não assumiu a posição de “artista autônomo” apenas porque assim quis; isso aconteceu porque ele, simplesmente, não suportava mais o trabalho na corte de Salzburgo”.
O autor descreve a Alemanha do século XVIII. Ali, havia palco para um promissor movimento literário, estimulado pela burguesia ascendente. Contudo, havia uma defasagem em relação à música. A estrutura social para um músico autônomo ainda era incipiente, não oferecia espaço e lugar para um músico, mesmo de seu calibre. Concertos pagos, venda de partituras, ainda estavam em estágios primordiais. Mozart correu riscos ao investir no vôo cego da carreira autônoma numa época pouco risonha para tais ações.
A própria situação de artista autônomo nos apresenta outra vez a ambivalência de Wolfgang Mozart. Se, por um lado, ele absorvera o comportamento da classe dominante europeia, sua imaginação musical era impregnada pelo sentir e compor aristocrático cortesão. Mozart compunha óperas, o que era considerado como o tipo mais prezado de obra musical da época. No entanto, os custos em apresentá-las eram quase proibitivos. Para um artista autônomo, isso era um risco.
Norbert Elias relata que o músico “antecipou as atitudes e os sentimentos de um tipo posterior de artista”, e que “a estrutura de sua personalidade era a de alguém que desejava, acima de tudo, seguir sua própria imaginação”. No entanto, o artista esbarrava na obrigatoriedade de moldar suas composições ao gosto da corte dominante, que, afinal, era quem lhe subsidiava. Quando buscou romper com este gosto, deparou-se com um circuito cultural ainda inicial, pálido, e não muito favorável para artistas autônomos como ele.
Mozart sonhou em alcançar, ou superar, Beethoven. Se tivesse coragem de permitir uma vida mais longa, certamente o alcançaria. Já morto, Wolfgang Mozart foi reconhecido. Quem sabe, se tivesse sido mais flexível consigo mesmo, teríamos um gênio mais longevo, com uma obra mais e mais rica. Ou não.

  1. Concluindo

Norbert Elias expõe um Mozart que a história tradicional não está acostumada a ver, distante do bufão do filme de Milos Forman, em 1984. O Mozart tradicional é o gênio e apenas gênio; Elias nos apresenta o Mozart com suas angústias junto do seu desenvolvimento como ser humano. “O sobrevivente, talvez, é que Mozart sobrevivesse a sua perigosa fase como menino prodígio, sem que seu talento tenha sido destruído”.
Por outro lado “a relação entre o “homem” e o “artista” tem sido um elemento especialmente desconcertante para muitos estudiosos, porque o quadro que emerge das cartas, relatórios e outras evidências combina mal com o ideal preconcebido”, o Mozart que Elias busca era o humano, o caráter genial não fica de fora da análise, mas o homem por traz da obra vem à luz. Nesse ponto Elias expõe a “sublimação” que muitas das obras de Mozart trazem em si, muitas vezes Mozart ouvia a peça musical dentro de si, e ela ganhava forma. Muitas vezes, com elementos culturais de sua vida, com o exorcismo de fantasmas interiores ou mergulhado em intensa autopiedade. A Flauta Mágica, Don Giovanni e o Réquiem falam por si.

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