do relatório da Comissão da Verdade - As igrejas protestantes e as graves violações de direitos humanos (uma visão metodista)


Dedico esta blogada ao meu padrinho de profissão de fé, o reverendo Adahyr Cruz, preso político pelo nefando DOPS, por tudo que me ensinou sobre a verdadeira Igreja Metodista. O texto original e completo está disponível para download: http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv .

Quando se trata do tema “protestantes” no Brasil (ou “evangélicos”, termo mais popularmente utilizado), a referência, em geral, é feita ao conjunto de cristãos não católicos presentes no país. A consciência de que este conjunto é formado por uma diversidade muito ampla de grupos não é largamente partilhada: está presente na academia, entre os estudiosos da teologia e das religiões, e entre alguns poucos segmentos de mídia preocupados em informar o mais correta e objetivamente possível quando o noticiário envolve tal segmento. Daí as diferentes tipologias que foram e vêm sendo criadas e recriadas para dar conta de tal diversidade. No entanto, correntemente, fala-se de “protestantes” ou “evangélicos” englobando todos os não católicos num só grupo quando se leva em conta a presença desses grupos religiosos na esfera pública, marcadamente no que diz respeito ao crescimento numérico, à presença na política, a movimentos culturais.

É possível sintetizar as tentativas de criar tipologias agrupando os protestantes fundamentalmente em dois grupos: (1) os históricos, aqueles de diferentes confissões que chegaram ao Brasil por conta de imigração ou por meio de missões dos Estados Unidos (presbiterianos, metodistas, batistas, luteranos, anglicanos) a partir da segunda metade do século XIX; (2) os pentecostais, que aportaram em terras brasileiras na primeira década do século XX, vindos também dos Estados Unidos, e têm raízes no protestantismo histórico, mas baseiam sua doutrina e prática religiosa na chamada “experiência com o Espírito Santo”, marcada pelo “dom de falar em línguas estranhas” (Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil, Evangelho Quadrangular). Entre os pentecostais se encontra a maior diversidade de grupos, com crescimento intenso, a partir dos anos 1950, de igrejas autóctones, estabelecidas por líderes brasileiros originados do pentecostalismo missionário (Brasil para Cristo, Deus é Amor, Nova Vida, Universal do Reino de Deus e muitas outras).

A formação desse segmento cristão no século XIX foi predominantemente baseada no fundamentalismo bíblico, no puritanismo e no sectarismo, base de uma visão de “afastamento das coisas deste mundo”, inclusive da política. Muito se transformou nestas bases ao longo do século XX: emergiram grupos abertos à atuação social, alimentados por teologias como a do Evangelho Social e a do Cristianismo Prático. O movimento ecumênico e os movimentos de juventude evangélica tiveram forte papel nesta mudança. No entanto, o conservadorismo, que sempre foi a tônica entre os evangélicos, provocou a omissão das igrejas frente à imposição da ditadura militar no Brasil e também tornou possível o alinhamento de boa parte das lideranças evangélicas com o governo de exceção. A postura oficial das igrejas protestantes diante do golpe militar de 1964, por meio de suas lideranças, pode ser classificada, de modo geral, como de apoio, sendo este imediato, da parte de presbiterianos e batistas, ou cauteloso, da parte de metodistas, episcopais e luteranos. A oposição com resistência existiu entre protestantes, mas não de forma oficial; foi assumida por lideranças clérigas e leigas, indivíduos e grupos vinculados ao movimento ecumênico e/ou que tinham, no seu histórico, uma formação teológica que levava a uma prática de engajamento social e de compromisso com a justiça. Muitos ingressaram em organizações de oposição à ditadura, atuaram até mesmo na clandestinidade e pagaram o preço por esse compromisso.

1) Aspectos gerais da perseguição estatal
Os protestantes com engajamento social, especialmente, aqueles vinculados ao movimento ecumênico, eram identificados pelos agentes do sistema como inimigos da nação. Protestantes e o movimento ecumênico estiveram sob constante investigação das agências de inteligência, com base na compreensão de que tinham poder de disseminação de ideias contrárias à Doutrina de Segurança Nacional. Um exemplo de tal compreensão e ação pode ser tomado do documento do SNI, produzido pela Agência Rio de Janeiro (ARJ), contendo 29 páginas, datado de 30 de outubro de 1980: “Genericamente, pode-se concluir que esses grupos religiosos procuram influir na política governamental nos diversos campos do poder nacional, através de educação e doutrinação das massas, visando a consecução de seus objetivos políticos”. Os agentes da repressão denominavam “progressistas” tanto católicos quanto protestantes, por conta de ações consideradas “contestação ao regime vigente e às autoridades constituídas”. Com relação ao segmento protestante o documento do SNI afirma que: [As igrejas] presbiterianas, metodistas e luteranas — têm sua ação orientada na linha semelhante a do clero [católico] progressista, através de diversos pastores e colaboradores tendo como ponto principal de apoio financeiro e de diretivas o Conselho Mundial de Igrejas – Cmi, Genebra/Suiça, de instituições de ensino como o Instituto Bennet no Rio e a Universidade Mackenzie em São Paulo. Estes religiosos têm sua ação política de contestação ao regime, de apoio aos movimentos reivindicatórios e grevistas baseados em pontos semelhantes aos grupos progressistas da Igreja Católica acrescidos de:
- fiel programação de eventos; - seus pronunciamentos são ressaltados através do Boletim “Tempo e presença” com vinculação ao CMI;
- desenvolvimento e manutenção do Ecumenismo;
- ênfase na doutrinação dos jovens. O apoio protestante internacional ao movimento ecumênico brasileiro, sobretudo do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), foi também alvo dos agentes estatais e consta em vários de seus documentos.

2) Perseguição à Confederação Evangélica do Brasil
A Confederação Evangélica do Brasil (CEB), forte expressão do movimento ecumênico brasileiro, foi um dos grupos que mais sofreu as ações da repressão. Era uma organização das principais igrejas protestantes brasileiras, fundada em 1934, com diversas frentes de atuação entre educação cristã, ação social e juventude. O Departamento de Estudos da CEB realizou séries de marcantes conferências, com a ênfase “Igreja e Sociedade”, entre elas a destacada Conferência do Nordeste (Recife, 1962) com o tema “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”. Logo após o golpe de 1964, a CEB foi invadida e teve seus arquivos apreendidos por agentes das forças de repressão militar. Diversos integrantes do movimento ecumênico protestante passaram pela experiência do enquadramento em inquéritos policiais militares, como será relatado adiante: foram presos, outros torturados ou tiveram de fugir do Brasil. Os depoimentos a seguir refletem a crise. Em 1960, o golpe já estava chegando. Eu estava em São Paulo, na reunião da [Confederação Evangélica do Brasil] e me avisaram: “Tem um senhor querendo falar com você”. Eu perguntei: “Quem é?”. Responderam: “Não sei; não quis dar o nome”. Fui lá. Um cavalheiro muito bem-vestido, de paletó, gravata, que perguntou: “O senhor é Waldo César?”. Eu disse: “Sim”. Respondeu: “Eu queria conversar com o senhor particularmente”. Fui para outra sala. Ele apresentou a carteira do DOPS. Eu perguntei: “O que houve?”. Ele respondeu: “Nós estamos aqui preocupados com o que estão discutindo. Que negócio é esse de nacionalidade? Que é isso?”. Aí me deu um estalo e eu perguntei: “O senhor tem tempo?”. Ele disse: “Como assim?”. Respondi: “O senhor tem tempo? Porque eu tenho que começar com o Profeta Amós”. O cara me olhou e repetiu: “Como assim?”. Respondi: “É que essa história vem desde o século VIII, antes de Cristo”. Ele me olhou espantado. Repeti: “Porque o Profeta Amós defendia uma sociedade nova, de justiça, e nós estamos tentando encontrar um caminho que nós queremos: um Brasil novo, uma nova nacionalidade de justiça”. O cara disse: “Tá, tá, chega, chega. Já entendi. Eu vou assistir a sua reunião hoje à tarde. O senhor não me apresente e não diga que eu estive aqui. Caso contrário, eu vou desmentir em público”. Sentou, ouviu, foi embora e nunca mais apareceu. O golpe foi em 1964 e eles em 60 já estavam se articulando [Waldo César, leigo presbiteriano e diretor do Setor de Estudos da Confederação Evangélica do Brasil].
No dia 1° de abril de 1964, o movimento militar derrubou o presidente João Goulart. A junta de diretores da CEB realizou uma reunião extraordinária, quando a exoneração de Jether, Waldo, Francisco e Domício foi proposta. Ao mesmo tempo um oficial do governo que se dizia investido de tal autoridade visitou a CEB para examinar os seus arquivos e documentos e para descobrir possíveis atividades políticas subversivas da entidade. (...) Foi precisamente neste momento que a diretoria decidiu demitir tais pessoas, e estas receberam ordem de não irem mais à sede. [...] a Conferência do Nordeste tornou esta ruptura ainda mais aguda, e tudo culminou com a expulsão do grupo progressista. [...] em quase todas as igrejas, as medidas extremas tomadas pela diretoria tiveram repercussões desfavoráveis. [Domício Mattos, pastor presbiteriano e funcionário do quadro da CEB].

3) Detenções arbitrárias e tortura de agentes eclesiásticos
As pesquisas da Comissão Nacional da Verdade não dão conta do exato número de detenções arbitrárias entre protestantes e de situações de tortura sofridas por homens e mulheres vinculados a este segmento religioso, nos porões das prisões do aparelho repressivo da ditadura militar, acusados  de subversão e de representarem ameaças à segurança nacional. Alguns casos chegaram ao extremo de morte e desaparecimento forçado, como será relatado adiante. É lamentável reconhecer que as limitações de pesquisa da CNV se devem ao grande número de ocorrências, sua dispersão pelos estados do Brasil e ao silêncio de muitos dos que sofreram essas violações dos direitos humanos que, diante dos traumas e do desejo de apagamento das ultrajantes memórias, não se dão a conhecer. Os casos aqui listados dizem respeito a sobreviventes das prisões, e resultam de registros em bibliografia e documentação aos quais a CNV teve acesso e dos depoimentos coletados nas audiências públicas e privadas, realizadas em 2012 e 2013. Como pode ser verificado, várias dessas vítimas foram perseguidas duplamente: pelo regime e por suas igrejas.

Principiando pelas detenções que recaíram sobre religiosos metodistas:

Dourival Beulke, pastor metodista, atuou em Recife/PE como missionário enviado pela Conferência Metodista de São Paulo para a frente missionária metodista do Nordeste. Preso por crime contra a segurança nacional em 1964, por vários meses.

Adahyr Cruz e Onésimo de Oliveira, estudantes de Teologia da Igreja Metodista, presos por um dia, pelo DOPS, em São Paulo, em 1966, depois de participarem de uma passeata de estudantes universitários em protesto contra a proposta de reforma universitária pela ditadura militar.

Derly José de Carvalho, líder da juventude metodista em Muriaé (MG), migrou com a família para o ABC paulista e passou a integrar o movimento sindical (1959), quando se tornou membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mais tarde do “Grupo dos 11 do Brizola”, em 1963, e do PCdoB. Em 1964, foi eleito para a direção do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Em 1966, foi enviado pelo partido à China, mas não conseguiu retornar ao Brasil devido à ameaça de prisão, e teve que buscar abrigo na Albânia. Conseguiu retornar ao país na clandestinidade e aderiu à luta armada (que classifica, em depoimentos, como “defesa armada”). Foi preso em maio de 1969, quando sofreu tortura. Após dois anos na prisão, foi trocado pelo embaixador da Suíça Giovanni Enrico Bucher, sequestrado pela VPR quando fora deportado para o Chile, em 13 de janeiro de 1971.
Eu tinha reunião, mas não fui, então o pessoal foi até minha casa e, quando chegaram, eles estavam lá. E como o pessoal já estava preparado houve um enfrentamento, quando morreram um ou outro. Com isso, eles não me executaram naquele momento porque a CIA queria falar comigo. (...) Morreu uma pessoa da equipe do Sergio Paranhos. Tivemos certeza absoluta de que ele morreu dentro da minha casa. E eu já estava preso, no pau de arara. Nessa hora eles queriam saber quem tinha ido à minha casa. (...) Eu fiquei 90 dias completamente incomunicável, minha mulher e ninguém sabiam onde eu estava. Passei quase 90 dias sem conseguir levantar do chão e sentar numa cadeira. Fui duas vezes para fazer massagem cardíaca no Hospital das Clínicas.

Renato Godinho Navarro, jovem metodista de Belo Horizonte ligado à AP. Preso no DEOPS, Belo Horizonte/MG, em 1969, depois preso arbitrariamente em Santo Amaro da Purificação, quando
vivia na clandestinidade. Levado para o quartel do Exército no Forte Barbalho, Salvador/BA, em maio de 1971 (a ordem de prisão só foi emitida em novembro) até dezembro de 1973. Foi condenado em 1972 a três anos e seis meses de prisão. Na fase indiciária sofreu tortura: "No Forte Barbalho passei por sessões de tortura física e psicológica — pau de arara, choques elétricos, principalmente na cabeça e nos órgãos genitais, e sempre com os olhos vendados. Após várias sessões, desmaiei. Quando acordei estava na cela e não conseguia me levantar. Acredito que devido aos choques elétricos. O processo de colocar-me de pé se deu de forma progressiva. Dependo na fase inicial de apoiar-me nas paredes da cela. A cela era um porão com grades na entrada e sem nenhuma janela. Sem nenhum tipo de instalação sanitária. As necessidades eram feitas numa lata e depois, acompanhado por metralhadoras ou fuzil, eu era obrigado a despejá--las todas em outro lugar.

Anivaldo Pereira Padilha atuava no movimento de juventude da Igreja Metodista e ecumênico nos anos 1960. Membro da Igreja Metodista na Luz, cidade de São Paulo, exerceu várias funções de liderança na igreja em nível nacional: diretor do Departamento de Mocidade da Junta Geral de Educação Cristã da Igreja Metodista, redator da revista da juventude metodista “Cruz de Malta”, secretário-executivo da União Brasileira de Juventude Ecumênica (Ubraje), e secretário regional para o Brasil da União Latino-Americana de Juventude Evangélica (ULAJE). Era estudante de Ciências Sociais da USP, o que tinha relação com a formação cristã que recebera, baseada na teologia da responsabilidade sociopolítica da Igreja. Era vinculado à organização de esquerda formada por cristãos brasileiros Ação Popular (AP). Anivaldo Padilha foi preso pela Operação Bandeirantes (Oban) em 28 de fevereiro de 1970 (...). A prisão ocorreu alguns meses depois de um exemplar do jornal Unidade III da Federação dos Jovens Metodistas de São Paulo, editado por Anivaldo Padilha, ter sido encaminhado ao DOPS pelos informantes pastor metodista José Sucasas Jr. e bispo metodista Isaías Sucasas (28 de agosto de 1969).61 O jornal continha críticas à direção da Igreja Metodista e artigos avaliativos da situação da Igreja e dos jovens. Um mês depois da delação dos líderes da Igreja Metodista, foi iniciado um inquérito policial pelo DOPS (29 de setembro de 1969) “para apurar atividades de militantes da Ação Popular (AP). Foi apurado que o requerente [Anivaldo Padilha] participou de reuniões de caráter político, realizadas na Igreja Metodista em São Paulo”. A prisão aconteceu, então, em fevereiro do ano seguinte.

Fernando e Celso Cardoso da Silva, irmãos, membros da Igreja Metodista Central em São Paulo, ligados à Ação Popular, presos em 28 de fevereiro de 1970. Testemunha da prisão e das torturas: Anivaldo Padilha. Os irmãos Fernando e Celso Cardoso foram presos em casa no mesmo dia. Uma reunião de jovens na Igreja Metodista Central de São Paulo foi invadida por agentes da Oban para procurar outros metodistas participantes da Ação Popular, como Domingos Alves de Lima e Clara Amélia Evangelista. “Quando a polícia chegou, quando o DOI-CODI chegou à Igreja Central para prendê-los, prender todo mundo, o pessoal fugiu. Eles fugiram pelos fundos, lá na Igreja Central. Dali, depois foram para o Chile”. O depoimento do pai de Domingos ao DOPS confirma a narrativa: “(...) 4 - Declarou o seguinte: (...) que soube, no domingo, ter seu filho fugido da Igreja quando percebeu a chegada da polícia, que depois disso não soube do seu paradeiro (...)”. (nota do blogueiro: essa história eu faço questão de contar depois, pois minha avó teve participação direta...)

Ao chegar à prisão da Oban, Anivaldo Padilha recebeu tortura imediata: Ao chegarmos à Oban (...) assim que a porta se fechou, recebi um soco no estômago, com tal violência, que caí e fiquei alguns segundos sem poder respirar. Começaram, então, a aplicar em mim o “telefone”, método de tortura que consiste em golpear os ouvidos da vítima com as duas mãos ao mesmo tempo, em formato côncavo. Os golpes foram repetidos várias vezes, seguidos de gritos para que eu confessasse ser membro de uma organização clandestina e que revelasse os nomes e endereços de todos os meus amigos. Descobri que estava diante do chefe da equipe de plantão naquele dia, o conhecido capitão Albernáz. Não consegui saber o nome do seu assistente naquele momento. Após esse interrogatório fui levado a uma das celas. Na parte da tarde, fui levado novamente para interrogatório. A partir desse momento, as torturas se intensificaram. Trouxeram Eliana, Celso e Fernando Cardoso da Silva, dois jovens metodistas como eu, que tinham sido presos também, e nos aplicaram golpes de “palmatória”, novamente o “telefone” e choques elétricos. Nessa sessão de torturas havia mais dois homens que, posteriormente, descobri tratarem-se do capitão Coutinho, da Polícia Militar/Corpo de Bombeiros, e de um torturador de apelido “Paulo Bexiguento”, provavelmente devido às marcas de cicatrizes de catapora em seu rosto. Depois de muito tempo de torturas, nos separaram e fui levado de volta à cela, já ao escurecer. Eu não havia ingerido nenhum alimento desde o café da manhã. Minha boca estava extremamente seca. Tinha a impressão de que minha língua ia rachar ou que minhas mucosas estavam se esfacelando. Pedi água e o carcereiro me respondeu: “Não tenho autorização para dar água a presos que voltam do interrogatório. Beber água logo depois de levar choques pode matar”. Trouxeram a janta: sobras da comida do quartel trazidas em grandes caldeirões. Tive dificuldade para comer. Além da boca seca, minhas mãos estavam inchadas e eu mal conseguia segurar a colher. Ademais, eu tinha grande dificuldade para deglutir a comida composta de arroz, feijão e tomate picado. Meu companheiro de cela insistiu para que eu comesse porque aquela era a única refeição diária. Às vezes, serviam o café da manhã, que consistia em uma pequena caneca de café com leite e um pãozinho. Conheci, naquele instante, uma outra forma de tortura: a fome. Não consegui dormir. Tarde da noite, vieram me buscar novamente. Achavam que eu devia ser um comunista importante porque tinha relações internacionais, especialmente com o mundo ecumênico. E, segundo eles, esse era um movimento subversivo. Forçaram-me a tirar minha roupa e me colocaram na “cadeira do dragão”. Uma cadeira revestida com folhas de metal conectadas por um fio a um rádio militar de campanha. Fui colocado nu no assento com minhas mãos e pés amarrados. Exigiram que eu desse todas as informações que eu possuía. A cada negativa, o torturador girava a manivela do telefone para aumentar a intensidade dos choques. Para tornar os efeitos mais fortes, colocaram uma toalha úmida sob minhas nádegas. Os choques me provocavam convulsões e gritos. A sensação era de perda total de controle sobre minha capacidade mental, racional, e sobre os meus movimentos. Era insuportável! Posteriormente descobri que o torturador se chamava Baeta, mas não consegui saber se era militar ou civil. (...) Os interrogatórios diários, acompanhados de torturas físicas (choques, cadeira do dragão, socos, palmatória) e morais (simulação de execução, saída de carro com ameaças de jogarem meu corpo na Serra do Mar, insultos, ser qualificado com palavras de baixíssimo calão, ameaças de torturarem meus pais etc.) continuaram por muitos dias e depois diminuíram, até que, finalmente, fomos enviados ao DOPS para as formalidades policiais. Foram 20 dias diretos de “interrogatórios” na Oban.

Ana Maria Ramos Estevão, membro da Igreja Metodista em Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, ex-aluna de Teologia do Instituto Metodista, líder de jovens metodistas, tornou-se integrante da Aliança de Libertação Nacional (ALN). Presa por três vezes (junho de 1970, junho de 1972 e agosto de 1973; encaminhada para o Presídio Tiradentes, num total de nove meses). Julgada e absolvida. Na primeira prisão, pela Oban, foi torturada por 15 dias: Fiquei nua no pau de arara, levei choque na vagina. Recebi muita ameaça de que iriam me estuprar, não chegaram a cumprir. Os primeiros três dias foram mais fortes. Nos outros dias, a gente ouvia os gritos, as ameaças... você vê o chão todo sujo de sangue... nos amordaçavam para não gritarmos quando levávamos o choque. Levei vários tapas no rosto. O capitão Gaeta depois foi lá embaixo na minha cela dizer que tinha batido na gente porque a gente estava tendo ataque histérico. Ainda vinha se justificar. “Vocês não eram tão quentes assim na esquerda? Mesmo assim a gente teve que ser violento, porque vocês estavam tendo ataque histérico, começava a gritar”. E isso foi o que mais me ofendeu... claro... ser pendurada, ser obrigada a ficar nua, levar choque na vagina, tudo isto é muito humilhante, mas dizer que foi porque a gente tinha uma crise histérica, é uma coisa para te ofender como mulher.

Idinaura Aparecida Marques, jovem da Igreja Metodista, ligada à ALN, presa em 12 de julho de 1970 pela Oban. Indiciada em inquérito policial por atividades subversivas em 10 de agosto de 1971. Condenada a seis meses de prisão em 1971. Testemunha da prisão e das torturas: Ana Maria Ramos.

Claudius Ceccon, jovem metodista, arquiteto e cartunista que participava do Centro Ecumênico de Informação, foi preso em novembro de 1970 juntamente com toda a equipe de redação do jornal alternativo Pasquim, onde trabalhava como cartunista. O grupo ficou preso até fevereiro de 1971,  momento em que Claudius Ceccon foi para o exílio em Genebra, passando a atuar no Conselho Mundial de Igrejas, na área de educação popular, junto com o educador Paulo Freire, que também estava no exílio.

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