HeLa

Essa foi publicada no Pragmatismo Político, pela Priscila Doneda, do blogue M de Mulher http://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/02/mulher-negra-pobre-mudou-medicina.html. O negócio é o seguinte: uma das linhagens celulares mais conhecidas hoje em dia, usada em pesquisas de diferentes tipos, as células HeLa, são o fruto de um roubo... pois é, uma bela discussão bioética pode surgir daí. As células tumorais de dona Henrietta Lacks (daí o nome da linhagem) literalmente mudaram o mundo da pesquisa científica em Biologia Celular, Oncologia e nas terapias tumorais.

Mas quem é dona Henrietta? Negra, pobre, descendente de escravos, a filha de Eliza e Johnny, agricultores de tabaco como tantos na Virginia, EUA, nasceu Loretta Pleasant. Mudou o seu nome para Henrietta, não me pergunte o motivo. Leonina, nascida em 1° de agosto de 1920, em Roanoke. A menina perdeu a mãe quando tinha apenas quatro anos de idade e foi abandonada pelo pai, assim como seus nove irmãos. Na época, as crianças foram distribuídas e a garota foi morar com o avô materno, Tommy Lacks.

Apesar da pobreza, era uma menina alegre. Henrietta casou com o namorado de adolescência, David, com quem realizou o seu maior sonho: o de ser mãem, de cinco filhos. Até que...1951. Um caroço no colo do útero. Sem falar para a família, ela procurou ajuda médica no John Hopkins Hospital, em Baltimore, Maryland. Cabe lembrar que o racismo comia frouxo nos EUA, até haviam segregados leitos para “pessoas de cor”, como se branco não fosse uma cor, ora bolas! Diagnóstico: câncer cervical. Claro que os médicos, apostando na radioterapia, acharam que Henrietta conseguiria cura facilmente (ou foram omissos?). Infelizmente, as metástases difundiram-se pelo útero, rins, uretra, linfonodos, ossos da pelve, intestinos e lábios, como ocorre muitas vezes nesse tipo de tumor.

Nesse mesmo hospital, o dr. George Otto Gey buscava criar a primeira linhagem celular imortal da história. Aí a porca torceu o rabo: sem o famoso “Termo de Consentimento”, ou seja, sem pedir autorização, coletou as células como quem rouba frutas de uma árvore, e cultivou as células tumorais de Henrietta, que foram denominadas HeLa (lê-se “rilá”).

As células HeLa, como sabemos, são capazes de se multiplicar em um curto e surpreendente intervalo de tempo. A cada 24 horas, elas reproduzem uma geração inteira e nunca param. Isso por conta de uma mutação na enzima telomerase, que controla a renovação dos cromossomos cada vez que a célula se divide, evitando que os telômeros sejam degradados. Dá uma olhadinha no nosso "Práticas em Biologia Celular", pra mais explicações, tem edição nova na praça em breve!!

As HeLa passaram a existir em laboratórios de todo o mundo, gerando muito dinheiro para a indústria de medicamentos e pesquisa genética e em biologia celular. A quantidade de artigos científicos feitos utilizando a linhagem é absurda. Só que Henrietta nunca autorizou a doação, ou melhor, biopirataria de suas células, nem sua família recebeu qualquer tipo de compensação moral ou financeira pela extração indevida de seu material genético. Claro, milhares de estudos se basearam nas HeLa. Olha a listinha: ajudaram Salk a criar a vacina contra a poliomelite, foram usadas para desenvolver técnicas de quimioterapia, clonagem, mapeamento de genes, fertilização in vitro, remédios para tratamento de herpes, leucemia, gripe, diabetes, hemofilia, mal de Parkinson, digestão da lactose, doenças sexualmente transmissíveis, apendicite, longevidade humana, acasalamento dos mosquitos e os efeitos negativos de trabalhar em esgotos...

Henrietta Lacks morreu no dia 4 de outubro de 1951. Seus filhos só tomaram conhecimento de que as células da mãe estavam sendo usadas para estudos científicos décadas depois, quando pesquisadores apareceram, interessados no DNA de cada um. Na época, no entanto, eles também não entendiam o que estava sendo feito, já que acreditavam fazer exames para descobrir se tinham o mesmo tipo de câncer que Henrietta.

Interessada em divulgar esse enrosco todo, a jornalista científica Rebeca Skoolt precisou de dez anos de pesquisa até que, em 2010, conseguiu publicar o elogiado livro A Vida Imortal de Henrietta Lacks, lançado no Brasil pela Companhia das Letras. Ela contou com a ajuda de Deborah, filha de Henrietta, para que essa história fosse narrada com riqueza de detalhes e máxima veracidade. No entanto, não foi tão fácil convencer a herdeira a reabrir memórias tão dolorosas, o que é bem esperável. Para ter ideia, levou mais de um ano até que Deborah aceitasse transformar tudo isso em livro.

Em 2010, com os recursos arrecadados com a venda do livro, Skoolt criou uma fundação para homenagear a memória eterna de Henrietta e, naturalmente, ajudar a família Lacks, The Henrietta Lacks Foundation. Além disso, uma sepultura decente, com direito a uma lápide, foi construída onde ela estava, até então, anonimamente enterrada. Um seriado na HBO está sendo rodado, e a coisa promete ser boa, forte e impactante.

A história de Henrietta revela vários aspectos. O descaso e descaminhos da saúde pública nos EUA pós-guerra, relatado por Michael Moore em Sicko, e em especial para com a população afrodescendente, a própria reação dos médicos com a paciente, fazendo pouco caso de seu sofrimento, o ato de biopirataria, sem que a família da paciente soubesse que suas células estavam sendo utilizadas sem qualquer tipo de consentimento ou pedido formal, tudo isso nos faz pensar sobre o fazer ciência, o ato de cuidado em saúde, entre vários tópicos. Hoje, culturas de HeLa são comuns em universidades, centros de estudo, grandes hospitais e laboratórios. E onde ficou o sofrimento de Henriette, de sua família? Para pensar...

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